domingo, 30 de junho de 2013

Na carreira


A companhia acordou às pressas no meio da madrugada. Enquanto a chuva caía e transformava o terreno das barracas num enorme picadeiro enlameado, a voz áspera de Eurico Arrelia ditava ordens para que subisse o acampamento. As tendas que circundavam a lona, poucas horas atrás erguida, iam sumindo na paisagem úmida. Carregadores de primeira e última hora levavam as cadeiras para dentro de um caminhão e forçavam os animais menores para dentro de suas gaiolas. As contorcionistas, com a mesma facilidade com que torciam o próprio corpo, dobravam as fantasias e faziam com que desaparecessem dentro malas que iam enchendo o porta-malas do velho Del Rey. Às três e vinte, quando o circo já quase acabara de se acomodar nos contêineres, Oswaldo Thornton emergiu do seu sono de pedra distribuindo palavrões e buscando, dentre tantas explicações, aquela que justificasse mais uma partida.
- Para aqui, ô Margarida – interpôs-se em voz de sono, segurando uma das malabaristas pelo braço e fazendo rolar duas dúzias de bolinhas – Me explica o que foi que aconteceu dessa vez.
- De novo o aluguel – começou a mulher em tom aborrecido enquanto se abaixava para pegar as bolinhas cobertas de lama – Terreno caro, pouco lucro. O italiano achou melhor fugir. E é melhor você levantar a barraca. O circo tá quase todo no caminhão. Se a gente ficar aqui mais meia hora, é até muito.
Mesmo com a visão embaçada, Thornton distinguiu em meio à confusão de pessoas a figura espaçosa do dono do circo ralhando com uma criança que deixara cair um tambor, o sotaque italiano sobressaindo aos baques surdos dos pingos de chuva molhando a terra. Ao longe, as luzes do povoado brilhavam como estrelas numa noite sem lua. Acendendo um cigarro, Thornton deu meia volta e entrou na barraca, insatisfeito; juntou as poucas coisas suas antes de chutar o mastro que mantinha o abrigo de pé. Na mochila surrada, cartola, pedregulhos, um pacote de cream cracker, a foto da mãezinha, escova e fio dental, e um cantil bem cheio de vodca para afogar a vida que deixava para trás. De malas nas costas, driblou os perigos até o caminhão e se acomodou na cabine, do lado do motorista.
- E aí, Duca? Pra onde, dessa vez?
 - Pro nada de novo. Não é essa a ordem? Pra frente, sem caminho certo. Alguém já não falou que é o desconhecido que faz a fome das andanças? Só não lembro quem.
O silêncio serviu como concordância, ainda que dentro da carranca mal barbeada de Thornton cada partida significasse perder um pedaço de si próprio, ou morrer por completo, plantar uma árvore e arrancar-lhe a raiz, ir embora mesmo quando o corpo queria ficar, partir esquecendo a moça dos olhos de conta que levara para a cama e prometera amar para sempre.
Mas um artista não podia se dar a tais luxos. A saudade e os corações partidos são trabalho para os poetas. Ele, Thornton, como se chamava por ali, tinha que tirar coelhos da cartola e fazer números com cartas, fazer rir enquanto queria chorar. Ele sabia que seria assim quando deixou de lado a fortuna, o nome próprio e a vida normal para ingressar na viagem desconhecida do circo. Viagem sem volta, ele percebera, e tornara a perceber quando Arrelia meteu um tapa na lataria do caminhão, fazendo o motorista adormecido saltar e bater a testa no retrovisor central.
- Vieni! Avanti, stronzo!
A chave girou na ignição e Duca acelerou o motor, que rugiu e jogou fumaça nas faces molhadas dos outros artistas. As caixas amontoadas na carroceria chacoalharam quando o veículo entrou em movimento e ganhou a estrada esburacada. O mágico ficou observando, no retrovisor, a pequena concentração de casas ir se perdendo na distância. Dentro de algumas horas, a cidade acordaria e se surpreenderia com a saída furtiva do circo: o dono do terreno entraria em cólera com a perda, as crianças sentiriam falta das palhaçadas, e a donzela que Thornton iludira choraria as lágrimas de um amante perdido.
Uma curva encerrou repentinamente a visão da paisagem que, durante aqueles poucos dias, acolhera a companhia. A mesma curva matava Oswaldo Thornton e criava Cirilo Seabra, que desembarcaria quilômetros à frente com novas piadas e outra história sedutora e digna de aplausos, risadas, tostões e corações. A viagem era um transe necessário à vida do artista, uma mutação criativa e inerente à perpetuação da espécie circense.
Os buracos do caminho embalaram o sono das crianças aconchegadas entre a lona na carroceria. Seabra, por outro lado, aproveitou o balançar da estrada, o fumo e a bebida barata como forma do adeus que nunca soubera e pudera dar. E, num suspiro trôpego, adormeceu, pensando que talvez fosse hora de pensar em poesia.


*Este texto foi classificado na segunda colocação do III Concurso de Pequenas Narrativas, realizado pelo Ponto de Cultura Os Serões do Seu Euclides na cidade de Cantagalo, RJ.

sábado, 29 de junho de 2013

Benditos fones


Os fones de ouvido sempre foram meus grandes aliados nas guerras familiares. Me salvaram das muitas discussões de meus pais, combateram lado a lado nas erupções de minha avó, prestaram socorro especialmente nos sermões explosivos de meus tios.Ensinaram-me a nobre e covarde arte de defender meus tímpanos das invasões alheias, que preparam o terreno para disseminar a discórdia. Pois é certo que,por mais armado e paramentado que esteja, aos olhos da ignorância da idade, o mais novo sempre será o derrotado.


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Coração de tinta


Outros já diziam, bem antes de mim, que não se faz um ser humano só daquilo que lhe chamam corpo; vai além de células, tecidos, órgãos e sistemas; recai tamanha complexidade sobre o indizível, o inexplicável, num vão sobre o qual trovejam e se arrastam argumentos de farinha. Alguns se fazem em imagem, melodia, sensações. Eu mesmo, por exemplo, me faço em palavras.
Desenhei na pré-escola os encantos da infância, lamentei os amigos perdidos em metáforas, aliterei o som do córrego que corta o meu terreno. Rimei em verso e prosa as riquezas do meu sítio, deslumbrei, adjetivando, a cidade de concreto. Suspirei os amores perdidos e dei forma incerta aos que ainda viriam. Esculpi, palavra a palavra, o futuro que anseio. Dissertei futilidades, gastei latim, rabisquei bilhetes às pressas, carteei meus sentimentos. Organizei ideias, produzi e descartei, pensei e me arrependi de não produzir.
Fiz do meu coração tinta sobre o papel. Gravei-me na eternidade.
Um dia irei. Os relatos ficarão. Haverá três de mim: um que apodrece, roído pelos vermes; outro, que se eleva, que vive eterno em outra terra; e ainda um terceiro, imortalizado também neste mundo pelo seu coração de tinta.